*texto originalmente publicado na TV Lacuna
Dizem que a maternidade é algo incrível. Cresci ouvindo isso e aceitando este fato como parte do meu destino. De fato eu já desejei ardentemente ser mãe. Esse desejo hoje não é algo imposto a mim. Ele é uma escolha minha, que pode ou não ocorrer. Eu não sei se é realmente algo tão incrível como dizem, mas é uma ideia que eu fico feliz em aceitar caso faça parte dos meus sonhos futuros.
É “previsível” que este “tipo de sonho” se torne realidade. Tod@s esperam que eu o realize, afinal, sou mulher e isso é esperado pela sociedade. Eu não me pergunto o motivo dessa previsibilidade. Eu reconheço que a sociedade brasileira associe ser fêmea à maternidade, o que eu me pergunto é por quê o contrário também não é recebido com a mesma veemência.
Refletindo a respeito do caráter biológico de nossa espécie, não há motivos palpáveis para que a maternidade seja necessária ao ponto de sua negação causar o impacto que causa nas pessoas. É fato que estamos provocando o colapso de nosso planeta e, por consequência, ameaçamos a nossa existência. Entretanto, não somos uma espécie em extinção, não vamos desaparecer do planeta por falta de procriação e certamente não precisamos praticar a reprodução compulsória. Temos um desafio mundial para permitir a nossa continuidade na Terra e tenho plena consciência de que o planeta ainda não está perdido. Dito isso, vamos então refletir sobre outros aspectos da maternidade “obrigatória”.
No Brasil não existe uma lei que nos imponha a maternidade. Existe, porém, uma que não permite a interrupção da gestação pela livre escolha da mulher exceto em alguns casos (já ameaçados pela não-justiça que temos). Contudo, não é apenas a lei escrita e registrada que nos rege. Por trás de uma sociedade existe uma história alinhavada aos costumes que a constroem. Não podemos ignorar que a fundação de nosso país está calcada na invasão de um povo conservador católico que, mesmo com a soberania brasileira já conquistada, ainda domina o pensar e agir de nosso povo. É nesta origem religiosa do educar e do pensar que se sustenta a resistência à escolha pela não maternidade. Podemos até contra-argumentar dizendo que o Brasil é um país laico e que Igreja Católica não nos controla mais. De fato não o faz, mas os princípios cristãos tão fortes e numerosos ainda fazem parte do nosso vocabulário e de nossos atos. Essa é uma breve lembrança histórica sobre como a forte presença dos ensinamentos ligados à religião faz parte da construção do pensar. Parte dessa construção social fundamentada na teologia judaico-cristã conta a história de mulheres unicamente ligadas à construção da família (marido e filhos) ou à ruptura mesma. Essa história contada por mais de cinco mil anos tem um peso e uma força de um homem soberano e dono de sua família. Um homem que decide que caminho tomar fazendo a mulher, uma continuação de sua propriedade, segui-lo em sua jornada.
Acredito que não seja necessário discorrer sobre como a influência da Igreja Católica foi essencial para a construção de um homem que, já liberto da relação política entre Igreja e Estado, carrega consigo a imagem do homem dono, cabeça da família e da propriedade, e que tem o poder da palavra, do voto e da lei. A isso damos o nome de machismo. Porque obviamente não podemos dar o nome de igualdade. Seguem assim leis e julgamentos morais que tomam como parâmetro este homem da Bíblia. Um homem “à imagem e semelhança de Deus”, ou seja, um grande criador também homem. Certamente para a mulher sobra muito pouco.
Sendo a mulher este ser subserviente ao homem, que com sua ânsia de dar continuidade ao seu nome e à sua propriedade privada, necessita da instituição familiar para tal, fica evidente que para a mulher resta a maternidade como “papel fundamental” do funcionamento desta instituição. São muitos anos desses ensinamentos e deste reconhecimento. Assim, não podemos esperar que, apesar das mudanças significativas na política nacional e dos processos de empoderamento da mulher, tudo esteja resolvido e que seja fácil chegar e dizer: eu mulher não quero ser mãe e isso soar tão aceitável quanto o homem que diz que não quer ser pai.
Esta não é uma discussão comparativa de direitos. Essa é obviamente uma discussão em que a mulher não está equiparada ao homem em sua autonomia. Autonomia aqui significa aceitar a escolha humana e não ter de convencer ninguém dessa decisão.
Este, sem dúvida, é um dos textos mais difíceis que eu já escrevi até agora. Porque, honestamente, quando uma mulher diz não a qualquer coisa, deveria existir após este não apenas um ponto final e não uma série de tabus e discursos moralistas e privados para provar que esta está errada. A felicidade e plenitude da mulher não está ligada à maternidade, família, casamento ou algo assim. A felicidade está ligada à possibilidade de uma vida plena de direitos e de conquistas. A uma vida de respeito e de representatividade, de equilíbrio social e individual.
Para uma mulher que não anseia a maternidade em nenhuma de suas configurações, não deveria existir a estranheza, e sim a mesma acolhida de uma que anseia. A negativa em aceitar a escolha pela não maternidade está diretamente ligada à resistência cultural ao não que nos é direito, mas que não nos é respeitado.
Não somos reprodutoras. Não estamos exagerando e nem precisamos encontrar a pessoa certa pra perceber que estamos erradas. Somos mulheres em busca de equidade. Ser fêmea não implica em ser mãe. Assim como não ser fêmea ou não ser pessoa binária não implica que não sejamos mães. Não somos obrigadas a repetir padrão algum que tentam nos impor nos discursos do que é “natural”. Não aceitamos mais que nossa escolha seja um incômodo. Não aceitamos brincar de casinha. Não aceitamos que nos digam a que devem servir nossos corpos.
Gosto de pensar que o querer ainda será poder. Que em algum momento da história não será mais necessário ter de convencer ninguém que a maternidade é uma escolha e não um dogma. É uma condição que diz respeito exclusivamente à mulher, tendo ela já parido, adotado ou não. Nosso único papel social a cumprir é o de viver plenamente nos respeitando e respeitando as outras pessoas, como deveria ser o papel social de qualquer outr@. A função da mulher é apenas ser. Sem complementos, sem adjetivos ou funções adjacentes.
Este não deveria ser um “textão”. Aliás, nem deveria ser mais uma discussão. O assunto deveria acabar imediatamente após a frase “não quero ser mãe”. Mas nada relacionado ao empoderamento da mulher é fácil assim. É um pouco mais fácil quando se tem dinheiro para realizar um aborto seguro ou se tem apoio para enfrentar o machismo e a violência doméstica, quando se consegue barrar a cultura do estupro (alguém aí já conseguiu?…)
À mulher não foi dada a voz. Tudo lhe foi tirado e ainda é sob o disfarce dos homens de bem tão preocupados com nossas vidas. Ainda assim, vozes se erguem e vozes devem se calar para que a mulher possa falar.
Não somos animais nascidas em cativeiro, todavia ainda não somos totalmente livres. Enquanto nossas escolhas forem pautadas (e permitidas) a partir de instituições públicas ou privadas comandadas por homens (e portanto machistas), estaremos apenas pairando pelo conceito de liberdade. Enquanto nossas escolhas forem recebidas com ressalvas e recusas baseadas na moralidade, não teremos alcançado a autonomia que etiqueta a “boa vontade” masculina. Enquanto a todas as mulheres que não desejam ser mães, não for dado o mesmo respeito e aceitação que eu tenho por querer ser, nenhuma mulher será plenamente mulher, ou seja, ser human@ em todos os seus direitos.
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